Tenham o sal em vocês e estejam em paz uns com os outros (Mc 9,41-50)
27 de fevereiro de 2014Assim como as crianças – Marcos 10,13-16
1 de março de 2014“Jesus partiu daí e foi para o território da Judéia, do outro lado do rio Jordão. As multidões se reuniram de novo em torno de Jesus. E ele, como de costume, as ensinava.
Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Queriam tentá-lo e lhe perguntaram se a Lei permitia um homem se divorciar da sua mulher.
Jesus perguntou: “O que é que Moisés mandou vocês fazer?”
Os fariseus responderam: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e depois mandar a mulher embora.”
Jesus então disse: “Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento. Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e os dois serão uma só carne. Portanto, eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.”
Quando chegaram em casa, os discípulos fizeram de novo perguntas sobre o mesmo assunto.
Jesus respondeu: “O homem que se divorciar de sua mulher e se casar com outra, cometerá adultério contra a primeira mulher. E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro homem, ela cometerá adultério.””
Jesus “ensinava” as multidões. Alguns fariseus “queriam tentá-lo”. Desde o início este trecho do Evangelho de Marcos já nos coloca a questão da intenção, ponto-chave para compreende-lo e deixar que nos fale. A atitude atrás da decisão e da ação, o que se passa por dentro, no fundo, no coração é o que Jesus traz à tona. “Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações.” (Lc 1,35)
A pergunta daqueles fariseus centrava-se na Lei. Jesus retoma a Lei a partir de seu sentido profundo (o espírito da Lei, não a letra): “Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento”. Aqui Jesus já começa a desmontá-los (desmontar-nos), querendo revelar o que há por dentro quando nos aferramos tanto à letra e buscamos uma justiça centrada na Lei. Esta é a sua preocupação principal: Como está o nosso coração? O que estamos vivendo verdadeiramente?
E aí vai muito além da Lei, mais radicalmente que ela, ou seja, mais à raiz, ao sonho de Deus para o ser humano desde a criação. “Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e os dois serão uma só carne. Portanto, eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.”
Entrar no coração de Deus e unir o nosso coração ao dEle que quebra nossas durezas é o que importa. Deus nos criou por amor e para amar. Este é o seu sonho, que nos faz plenamente humanos, por isso nos diviniza. Sonho que Jesus veio resgatar e recriar em nós, dando-nos Seu Espírito para sermos capazes de viver o que separados, por nós mesmos, não podemos. Na união do homem e da mulher há um “deixar” e um “devir”, um vir a ser. “Deixará seu pai e sua mãe”, opção e passo de cada um, que supõe um rompimento para abrir-se ao outro, novo, diferente. Não se aferrar no “na minha casa era assim”, mas saber que agora a sua casa é outra, é a que vai ser constituída pelos dois que vieram de microculturas diferentes, distintas criações, aprendizados, experiências, gêneros, personalidades… e com toda esta diferença se unirão para vir a ser um. Enorme desafio, só possível pela ação do Amor nos dois. O que será construído, supondo a contribuição de cada um, é dos dois, é conjunto, é mútuo, já não mais individual: “Os dois serão uma só carne”. Já é muito isso? Pois Jesus vai ainda além: depois de deixarem de ser ‘cada um’, “filho do seu pai e da sua mãe”, e se tornarem “os dois”, eles ainda avançam para virarem “um”, não suprimindo um ao outro, não na fusão, mas na união profunda nas diferenças: “eles já não são dois, mas uma só carne”. E não será esta a imagem e semelhança da Trindade? Vivendo este projeto profundo do Matrimônio, o casal se aproxima de Deus e, por isso, de sua verdadeira identidade de filho e filha do Pai, realiza sua vocação sendo cada vez mais humano. Obviamente só Deus pode fazer isso: “Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.”
Este texto acaba nos puxando para refletir sobre o divórcio, sobretudo na nossa realidade atual, onde ele é cada vez mais comum. O divórcio é circunstancial, não estrutural. Foi circunstancial no tempo de Moisés, quando ele se viu obrigado a colocar uma Lei para limitar os abusos e regular a vida social; circunstancial no tempo de Jesus onde ele, diante desta pergunta, além de voltar à raiz, revelando a dureza do coração de seus interlocutores, acrescentou algo extremante revolucionário: a mesma Lei sendo válida para homens e mulheres. Reparemos que a pergunta dos fariseus dirigia-se ao homem mandar a mulher embora. E Jesus, quando a retoma, a aplica aos dois, citando até primeiramente os homens: “O homem que se divorciar de sua mulher e se casar… E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar…”; e é circunstancial hoje.
Quais as nossas circunstâncias? Namoros iniciados de qualquer maneira; na própria Igreja o Matrimônio não sendo compreendido e valorizado em toda esta profundidade de chamado de Deus, de vocação, e assim preparado (Matrimônio e Ordem são os dois sacramentos do serviço; para celebrar a Ordem, quantos anos de preparo no seminário, Filosofia, Teologia, acompanhamento espiritual, discernimento etc. E para celebrar o Matrimônio?”; famílias desestruturadas; um clima de individualismo, consumismo e coisificação do ser humano generalizado… Há uma sensibilidade necessária para compreender os casos concretos que se colocam diante de nós, enxergar os Rostos que se apresentam e suas circunstâncias. Os bispos alemães chegaram a escrever um documento de extrema sensibilidade para tratar dos recasados, abordando o acompanhamento necessário a partir da ferida que é um relacionamento desfeito.
No entanto, o convite desta oração é centrarmos não no divórcio, mas no projeto de Deus. Pedir ao Espírito a graça de entrar no coração do Pai com Jesus, de ver seu sonho para uma relação a dois, sonhar com Ele o mesmo para nós ou para outras pessoas, e que seja esta profundidade do Amor a nos conduzir nas circunstâncias e para além delas.
Tania Pulier, comunicadora social, Família Missionária Verbum Dei e pré-CVX Cardoner