Mas é você, meu amigo (Mateus 26,14-25)
16 de abril de 2014A Glória na cruz (João 18,1-19,42)
18 de abril de 2014“Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado a sua hora. A hora de passar deste mundo para o Pai. Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
Durante a ceia, o diabo já tinha posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, o projeto de trair Jesus. Jesus sabia que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos. Sabia também que tinha saído de junto de Deus e que estava voltando para Deus.
Então Jesus se levantou da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando com a toalha que tinha na cintura.
Chegou a vez de Simão Pedro. Este disse: “Senhor, tu vais lavar os meus pés?”
Jesus respondeu: “Você agora não sabe o que estou fazendo. Ficará sabendo mais tarde.”
Pedro disse: “Tu não vais lavar os meus pés nunca!” Jesus respondeu: “Se eu não o lavar, você não terá parte comigo.”
Simão Pedro disse: “Senhor, então podes lavar não só os meus pés, mas até as mãos e a cabeça.”
Jesus falou: “Quem já tomou banho, só precisa lavar os pés, porque está todo limpo. Vocês também estão limpos, mas nem todos.” Jesus sabia quem o iria trair; por isso é que ele falou: “Nem todos vocês estão limpos.”
Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto, sentou-se de novo e perguntou: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão; eu sou mesmo. Pois bem: eu, que sou o Mestre e o Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz.“”
Esta passagem tem como centro o convite a deixar-nos lavar por Jesus, receber o seu dom, sua oferta de amor. Só então podemos segui-lo fazendo o mesmo que Ele. Peçamos no início da oração a graça de acolher o dom gratuito.
O primeiro versículo começa situando a narrativa no tempo – “Antes da festa da Páscoa”, anunciando solenemente a chegada da “hora” de Jesus, que havia sido preparada por seus sinais. Qual é esta hora? “A hora de passar deste mundo para o Pai”. O elemento desta passagem é o amor: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo”. É um amor que não se improvisa, mas que, tendo sido realizado durante toda a sua vida, é levado agora até o fim, até o extremo. Este fim/extremo denota tanto o final da vida como a plenitude, a consumação. Aponta, assim, o horizonte, a realização da missão de Jesus – tornar “visível” o Pai manifestando o seu amor. Este início já nos coloca aqui na dimensão da morte de Jesus como sua elevação, glorificação dele e do Pai, vinculando-nos nela pelo amor.
Em seguida, o evangelista apresenta o quadro da ceia comunitária, focando dois atores, Judas e Jesus. Esta ceia, onde as pessoas estão juntas reclinadas à mesa, se dá num clima de hospitalidade e relação íntima, no qual se torna mais gritante a presença de um falso conviva, feito instrumento do Diabo, que se contrapõe ao amor revelado. Diante do grande antagonista de Deus, o “diábolos”, semeador de divisão, que age em Judas, está Jesus, com a consciência intensa (típica do Evangelho de João) de que o Pai tinha posto em suas mãos todo o poder de salvação (cf. Jo 3,35). Esta oposição ressalta com mais força a gratuidade do seu amor. Se “entregar Jesus”, aparecendo no início e ao fim do trecho, coloca uma espécie de moldura na cena do lava-pés, o amor ao extremo de Jesus o supera e se manifesta exatamente aí, neste marco, que é o marco da cruz. É traçado aqui o grande itinerário de Jesus, que saiu de junto do Pai (v.3: cf. 1,1.18) e agora percorre o caminho de volta a Ele.
O ápice de toda esta passagem está na frase principal: Jesus se levanta da mesa, tira/depõe o manto de mestre, toma uma toalha de servo e a amarra à cintura. Para tomar esse lugar do servo por amor – quem comunica, manifesta, expressa o amor-doação do Pai –, para que esta atitude expresse realmente o que se é, é preciso antes se despojar de si mesmo, do seu próprio lugar. Sinal da vida oferecida livremente e que é retomada (cf. Jo 10,18). A sequência de verbos, de ações expressas nos versículos 4 e 5 surpreende, deixa boquiabertos os que contemplam a cena, pelo movimento de despojamento.
Lavar os pés dos hóspedes que chegavam de viagem era um gesto comum no Antigo Oriente para indicar hospitalidade. Esta tarefa era geralmente confiada a um escravo, pois tinha forte conotação de humilhação. Mais tarde, acabou por exprimir reverência por alguém, podendo ser realizado por um discípulo com relação a seu mestre, uma mãe com o filho rabi, uma mulher com o marido ou os filhos com o pai. Em todos os casos, supõe uma posição de inferioridade. Ao lavar os pés dos discípulos, Jesus, o enviado do Pai, o Mestre e Senhor, toma de forma evidente o lugar do servo. Esta anomalia escandalosa provoca o diálogo que vem em seguida.
Nele, Pedro é ao mesmo tempo personagem autônomo e porta-voz do grupo. Sua oposição acentua a distância entre si e o Senhor. Não pode tolerar que aquele a quem sempre tratou como um Rabi se coloque diante dele como um escravo. A resposta de Jesus sugere que o gesto tem uma razão de ser misteriosa, mistério ao qual se é introduzido na “passagem” pascal. Pedro não reconhece sua incompreensão e reitera com mais vigor a recusa. A expressão “ter parte” significa na Bíblia partilhar o bem ou a herança. Ter parte com Jesus é estar com ele onde ele está, formando com ele uma comunidade de vida. Aqui o gesto já começa a se abrir: é aquilo pelo qual o discípulo chega a essa comunhão.
Pedro então pede apaixonadamente ser lavado, pois não quer deixar de ter parte com o Senhor, mesmo que ainda não o compreenda. Pode ser nosso pedido também. Quando Jesus responde: “aquele que tomou banho (…) está inteiramente puro”, refere-se à escuta da Palavra acolhida na fé. O gesto de Jesus expressa uma atitude de serviço sem reserva, que Pedro só poderá compreender “mais tarde”, mas que é indispensável para que o discípulo, que “já está puro” participe da sua própria vida, comunhão divina realizada pelo Espírito como fruto da hora de Jesus. O autodespojamento de Jesus é a sua própria glorificação, antecipação do acontecimento iminente da cruz, onde manifesta o Pai e faz de nós a comunidade que “tem parte” com ele pela acolhida do dom da sua vida. O lava-pés, antes de ser algo a imitar (vv.12-17) é um ato escatológico único, no qual somos atingidos pelo fim dos tempos, se nos “deixamos lavar”.
O convite maior que Jesus nos faz, então, é receber o dom da sua autodoação, deixando-nos constituir, por sua gratuidade, a comunidade que vive em comunhão com ele pelo amor feito serviço radical.
Podemos lembrar também na nossa oração de hoje, agradecer e pedir pelas pessoas das nossas comunidades que nos desconcertam pelo seu amor posto em ação, pela série de opções e atitudes que tomam, num despojamento da própria imagem, do próprio lugar na comunidade ou sociedade, da briga por ter a razão ou ser reconhecidas. Constantemente tiram o manto – ainda que sua sabedoria de vida o faça próprio delas – e colocam a toalha. Diante de seu serviço, estupefatos, chegamos a protestar, nós que pensamos em termos de hierarquia: “A senhora? (O senhor?) Não!” Mas elas, que experimentam uma dignidade que não lhes pode ser tirada, sorriem e continuam, como dizendo: “Recebe, irmã, irmão, o amor entregado que desmancha essas categorias do mundo, que faz passar dele ao Pai, tornando-nos sua família”. Sua oferta ultrapassa em nós as resistências de quem está por demais acostumado a relações de troca, quando não de compra e venda. Feita no Espírito de Jesus, traz presente a doação dele e continua nos revelando o amor de Deus. O que pode gerar em nós senão a acolhida agradecida da gratuidade que nos transforma por dentro, lançando-nos na mesma dinâmica de oferta da vida?
Tania Pulier, comunicadora social – Palavra Acesa Editora – Família Missionária Verbum Dei e pré-CVX Cardoner.