“Saía dele uma força que curava todas as pessoas”
12 de setembro de 2017Ele veio para nos dar a vida
14 de setembro de 2017“Jesus olhou para os seus discípulos e disse:
— Felizes são vocês, os pobres,
pois o Reino de Deus é de vocês.
— Felizes são vocês que agora têm fome,
pois vão ter fartura.
— Felizes são vocês que agora choram,
pois vão rir.
— Felizes são vocês quando os odiarem, rejeitarem, insultarem e disserem que vocês são maus por serem seguidores do Filho do Homem. Fiquem felizes e muito alegres quando isso acontecer, pois uma grande recompensa está guardada no céu para vocês. Pois os antepassados dessas pessoas fizeram essas mesmas coisas com os profetas.
— Mas ai de vocês que agora são ricos,
pois já tiveram a sua vida boa.
— Ai de vocês que agora têm tudo,
pois vão passar fome.
— Ai de vocês que agora estão rindo,
pois vão chorar e se lamentar.
— Ai de vocês quando todos os elogiarem, pois os antepassados dessas pessoas também elogiaram os falsos profetas.”
O Evangelho de hoje é incômodo. Felizes de nós se experimentarmos esse incômodo e não fugirmos a ele, mas deixarmos que o Senhor nos fale o que precisamos ouvir e nos mostre o que precisamos ver através dele.
Pedirei licença a Luiz Carlos Ramos para trazer abaixo a sua reflexão, que nos ajuda a atualizar este trecho de Lucas para a nossa realidade.
“Se Jesus vivesse no Brasil em pleno século 20 (ou 21), e seu famoso Sermão do Monte fosse relatado por um Mateus contemporâneo, tal discurso talvez recebesse o título de “Sermão do Morro”, pois penso que Jesus o pregaria em lugares como a Favela da Rocinha, ou o Morro do Sabão.
Se, por outro lado, o repórter fosse um Lucas contemporâneo, talvez o título fosse “O Sermão da Baixada”. Pois o Lucas bíblico diz que Jesus fez esse discurso numa planura. Então, eu imagino Jesus pregando na Baixada Fluminense. Ou nas várzeas alagadas.
Não sei sua opinião, mas para mim, faz muita diferença se penso em Jesus pregando esse sermão para os moradores da favela. Nesses lugares considerados redutos de pobreza, violência, fome, crimes, a voz de Jesus parece ressoar como o som de mil trovões (ou de muitos “Rock in Rio”), proclamando:
Bem aventurados os pobres…
Muitos teólogos e biblistas escreveram páginas e páginas discutindo se “pobre” é pobre ou se é outra coisa. Mas, se imagino Jesus pregando na favela, essa discussão parece tão tola. Os empobrecidos não filosofam sobre a pobreza, eles a sofrem. O que sei é que Jesus os ajuda a encontrar réstias de felicidade, em meio aos labirintos do morro. E a Voz do que clama no morro anuncia:
Bem aventurados os que têm fome…
É verdade! Jesus se referia aos que anseiam por justiça. Mas na favela, enquanto a barriga vazia ronca, os intestinos se reviram pelo pavor dos “justiceiros”. Estes últimos se supõem famintos de justiça. Mas na verdade se alimentam de entranhas e sangue humanos – a mais torpe das refeições injustas.
A verdadeira fome (a da barriga e a do coração) é amenizada por Jesus, quando abençoa o povo em seus casebres, enquanto maldiz os vampiros-urbanos e suas chacinas. Ora, Jesus oferece seu próprio corpo e sangue como alimento para a vida eterna. (…)
Mas a Voz não se limitou aos morros e baixadas, ela também invadiu as mansões, os templos e mercados da capital (ou deveríamos dizer do capital):
Mas ai de vós, os ricos…
Fico imaginando Jesus em um shopping center, dirigindo estas palavras aos ricos. Embora a maioria de nós não seja rica, estamos em melhor condição do que muitos. E devemos ter consciência de que muito das nossas mordomias só são possíveis porque, em contrapartida, um número incontável de pessoas sofre privações. Se o fato de termos fartura parece consolo, diante do meu próximo carente isso se transforma num tormento. Por isso a Voz incomoda a consciência:
Mas ai de vós, os que estais fartos…
Imaginemos Jesus dizendo essas palavras num restaurante desses de rodízio de carne. Como poderíamos ter uma boa digestão sabendo que essa é uma “injusta refeição” (como cantava Maraschin)?
Não é de se estranhar que muitas das doenças dos abastados e colunáveis dos nossos dias só são curadas mediante rigorosa dieta. E, aqui, a medicina assume ar sacerdotal proclamando rigorosos “jejuns” a penitentes e obesos pacientes. Vai-se longe o tempo em que os cristãos praticavam o jejum para poderem sentir a alegria dos bem-aventurados. Por isso, quem tem ouvidos para ouvir, ouça:
Mas ai de vós, que agora rides…
Já imaginaram Jesus invadindo os faustos programas dos domingões, ou os desses roedores transistorizados, para dizer que seu divertimento se tornará em pranto?
A comédia serve para desviar a atenção da tragédia. “A minha gente sofrida esqueceu-se da dor, pra ver a banda passar…” (Chico Buarque). Mas, depois que a banda passa e tudo volta ao seu lugar, resta uma trágica realidade. “Ai de vós que agora rides porque haveis de lamentar e chorar”.
É por essas e outras, que quando estou farto e gargalhando, às vezes suspendo o riso, olho pro morro mais próximo e suspiro uma prece que aprendi:
“Senhor, enquanto muitos querem comer,
Mas não têm comida;
E muitos têm comida,
Mas não podem comer;
Nós, que temos comida e podemos comer,
Rogamos-te em favor destes e daqueles”. Amém.”
(Luiz Carlos Ramos)
Apenas acrescento uma questão que pode ajudar a nossa oração, que podemos fazer a nós mesmos diante do Senhor, ou deixar que Ele nos faça:
– Você tem fome de que? Você tem sede de que? E onde procura saciar a sua fome e a sua sede?
O Papa Francisco questionou-nos em sua encíclica sobre o cuidado da casa comum que temos colocado todo o nosso desejo no consumo. Ele se torna insaciável (exatamente porque não sacia) e destruímos o planeta, a começar pelos mais pobres, as maiores vítimas dessa destruição.
Outro dia fui pela primeira vez numa clínica de estética, fazer um procedimento que ganhei de uma amiga. Apresentaram-me tudo quanto é tipo de tratamento e saí bastante convencida de que precisava cuidar dos meus pés de galinha, fazendo contas para ver se poderia e quando poderia, até deixar-me tocar pela pergunta que ficava de fundo (essa que fica, mas que costumamos sufocar): “É disso mesmo que você precisa?” É que fiquei mais tocada ainda (na verdade, chocada) com a história que a recepcionista me contou, da moça que chegou buscando um tratamento para tirar gordura e cujo abdômen elas não conseguiam nem pinçar, pois não havia nada para tirar ali. Saí pensando: que inquietação é essa que consome esta moça, que falta é essa que ela experimenta e acredita ser estética, talvez por só conhecer esse caminho? Pobre moça rica!
Diante desse Evangelho, pergunto a mim e convido você a perguntar a si mesmo: Qual a minha verdadeira fome? Tenho arriscado fazer a experiência a cada dia de que em Jesus e em seu Reino encontram-se a fonte do meu desejo? Que experiência tenho da alegria que o evangelista Lucas fala, e que vem quando me dedico aos que têm fome?
Peçamos ao Senhor que nos incomode bastante hoje com esse Evangelho, que não achemos que é para o vizinho, mas o peguemos para nós e nos deixemos transformar por ele.
Tania Pulier, jornalista e teóloga, membro da CVX Cardoner e da Família Missionária Verbum Dei