“Jesus e Abraão”
22 de março de 2018“Será que ele vem à festa?”
24 de março de 2018Então eles tornaram a pegar pedras para matar Jesus. E ele disse:
— Eu fiz diante de vocês muitas coisas boas que o Pai me mandou fazer. Por causa de qual delas vocês querem me matar?
Eles responderam:
— Não é por causa de nenhuma coisa boa que queremos matá-lo, mas porque, ao dizer isso, você está blasfemando contra Deus. Pois você, que é apenas um ser humano, está se fazendo de Deus.
Então Jesus afirmou:
— Na Lei de vocês está escrito que Deus disse: “Vocês são deuses.” Sabemos que as Escrituras Sagradas sempre dizem a verdade, e sabemos que, de fato, Deus chamou de deuses aqueles que receberam a sua mensagem. Quanto a mim, o Pai me escolheu e me enviou ao mundo. Então por que vocês dizem que blasfemo contra Deus quando afirmo que sou Filho dele? Se não faço o que o meu Pai manda, não creiam em mim. Mas, se eu faço, e vocês não creem em mim, então creiam pelo menos nas coisas que faço. E isso para que vocês fiquem sabendo de uma vez por todas que o Pai vive em mim e que eu vivo no Pai.
A essa altura tentaram novamente prendê-lo, mas Jesus escapou das mãos deles.
Ele voltou de novo para o lado leste do rio Jordão, foi para o lugar onde João Batista tinha batizado antes e ficou lá. E muita gente ia vê-lo, dizendo:
— João não fez nenhum milagre, mas tudo o que ele disse sobre Jesus é verdade.
E naquele lugar muita gente creu em Jesus.
Espírito Santo, amor do Pai e do Filho, seja presença viva e vivificante no meio de nós, acendendo nossos corações com o fogo desse amor.
Após fazer uma primeira leitura do texto, senti que era preciso retroceder um pouco, para obter um melhor entendimento de todo o contexto.
Leio, no capítulo 9, sobre a cura de um cego de nascença por Jesus. Cura que se revela como libertação integral, visto que o homem adquire não somente a capacidade visual, mas assume, integralmente, sua dignidade e sua liberdade.
Avanço rumo à passagem de hoje e leio, nos primeiros versículos do capítulo 10 (Jo 10, 1-21), um belíssimo discurso, em que Jesus se autodenomina o Bom Pastor. Diferentemente do porteiro, que abre a porta ao pastor, mas não se ausenta de seu posto, ou do assalariado, que foge assim a ameaça surge, o Bom Pastor chama para si as ovelhas, cada uma por seu nome, retira-as do redil, caminha à frente delas, e elas o seguem, pois reconhecem sua voz. Essa sequência de ações revela a profunda relação pessoal de cuidado e afeto estabelecida entre o pastor e as ovelhas. Relação que o faz ultrapassar os estreitos limites do serviço. Para este Pastor, cada ovelha tem valor único e imensurável, muito além do econômico. Por uma única que se perde, ele será capaz de deixar as demais noventa e nove (Mt 18, 10-14; Lc 15, 1-7).
Avanço um pouco mais e deparo-me com a Festa da Dedicação do Templo que “celebrava a purificação e nova consagração do altar no templo de Judas Macabeu”. Por acontecer no inverno, o povo se refugiava nos pórticos do templo, onde Jesus também se encontrava. Alguns judeus o assediavam e exigiam dele a declaração de ser ou não o Messias que eles esperavam, com evidente intenção de implicá-lo e denunciá-lo como um blasfemo. O diálogo que aqui começa desencadeia todo o resto. Ponho-me na cena a escutar falas e observar atitudes.
Percebo que há uma grande diferença conceitual entre os termos Messias e Bom Pastor. Um não equivale, de forma alguma, ao outro. O termo Messias é carregado de forte sentido para os judeus que, naquela época, sob a dominação de Roma, esperavam ansiosos por aquele que reconstruiria a nação de Israel, restauraria o reino de Davi e traria paz. Esse era o Messias esperado pelos judeus, capaz de valorosos atos políticos e militares em favor da libertação de Israel.
Jesus evitava o uso do termo. Diante da pergunta, preferiu mostrar qual era sua missão: dar vida eterna e proteger as ovelhas; agir em nome do Pai, atitudes singulares do Bom Pastor. E relembra àquelas pessoas: “Eu já disse, mas vocês não acreditaram. As obras que eu faço pelo poder do nome do meu Pai falam a favor de mim, mas vocês não creem porque não são minhas ovelhas. As minhas ovelhas escutam a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem”.
Essa resposta, que denuncia a hipocrisia existente no coração, faz-me lembrar das várias situações em que, por pensarmos diferentemente de outra pessoa, tentamos jogar por terra tudo o que ela faz ou diz. Situações em que não somos capazes de ver e reconhecer obras de Jesus na vida desse outro.
Essa atitude é muito parecida com a destes judeus. Tanta coisa boa vemos à nossa volta, mas basta uma que não nos agrade para tomarmos pedras nas mãos. Tantas vezes, deixamos nos levar por discussões que só dividem, pois não abrimos mão de nossa forma de pensar, quase sempre carregada de desamor. Será que somos, verdadeiramente, capazes de reconhecer a voz do Pastor a quem declaramos seguir? ou não a reconhecemos e seguimos outras tantas, perdendo-nos em legalismos, excluindo aqui e ali?
É importante observar, também, que Jesus responde, definitivamente, à acusação de blasfêmia feita por aqueles judeus: “isso para que vocês fiquem sabendo de uma vez por todas que o Pai vive em mim e que eu vivo no Pai.
Isso era inadmissível para aquelas pessoas, que viviam uma relação de separação com Deus. Deus era distante, terrível, temível e inalcançável. Para Ele, o culto judaico preparou um lugar apartado, o Santo dos Santos, em que somente um sacerdote, devidamente investido, poderia penetrar.
Jesus, diferentemente, experimentava uma relação íntima de amor com Deus desde sempre. Para ele, era possível vivê-la em todo tempo e em todo lugar, pois não se rompera com sua encarnação. Essa relação de intimidade com Deus, que lhe dirige a prece chamando-o de Pai, era totalmente desconhecida dos judeus, que sequer podiam pronunciar o Seu nome.
Além disso, Jesus não se permite uma relação de exclusividade com o Pai. Ensina aos discípulos e a nós, por extensão, uma oração inclusiva, rezada no plural, capaz de nos fazer experimentar, ao mesmo tempo, a filiação divina e a fraternidade universal. Cada enunciado do Pai Nosso deve ser rezado e sentido em uníssono, deixando claro que uma coisa depende da outra, não pode ser vivida separadamente. Nesse sentido, João nos lembra, em outra passagem: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Pois ninguém pode amar a Deus, a quem não vê, se não amar o seu irmão, a quem vê. O mandamento que Cristo nos deu é este: quem ama a Deus, que ame também o seu irmão” (1 Jo 4, 20-21).
O amor de Jesus, muitas vezes, é insuportável. Não coube na mentalidade do povo que o cercava, essencialmente sistemática, carente de sinais para acreditar, que não os permitia se abrir em atitude de fé, para então, a partir dela, ver os inúmeros sinais já realizados. Como ávidos caçadores do cumprimento das escrituras, os assediadores de Jesus estavam interessados em testá-lo, pondo-o à prova o tempo todo.
Esse tamanho amor, tão estranho, tão imenso, tão entregue, incompreensível para aquelas pessoas, também o é, ainda hoje, para muitos de nós. Como aqueles judeus, não o conseguimos conceber, não o suportamos, porque teimamos compreendê-lo a partir de nossa lógica meritocrática e retributiva, porque o submetemos a nossas formas de medição e nossa justiça limitada. Como os trabalhadores do aprisco, não ousamos romper esses limites.
Senhor, sua palavra de hoje fala fortemente ao nosso coração. Você nos apresenta suas boas obras e nos interpela. Revela sua relação de intimidade com Deus e nos convida a vivê-la em fraternidade com o outro. Seremos capazes de ver suas boas obras na vida, no diferente, no excluído? ou preferimos os caminhos de morte que separam, apontam, excluem? Por qual de suas boas obras o estamos matando, ainda hoje? Ajude-nos em nossa humanidade, tão distante ainda do que Deus preparou para nós. Amém!
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Regina Maria – Família Missionária Verbum Dei – Belo Horizonte